
A Suméria, a terra banhada pelos rios Tigre e Eufrates na antiga Mesopotâmia (hoje sul do Iraque), é um nome que ressoa com a invenção e a inovação. Muitas vezes chamada de “berço da civilização”, foi aqui que a humanidade deu passos monumentais, passando de assentamentos agrícolas para cidades complexas, de pictogramas para a escrita cuneiforme, e de chefias tribais para reinos organizados. A saga suméria, no entanto, não é apenas de progresso; é também de conflito, rivalidade e, em seus capítulos finais, de uma queda que redefiniria o cenário político e cultural do Oriente Próximo.
As Raízes Profundas: O Gênese de uma Civilização Urbana
A história da Suméria começa muito antes da ascensão de seus reis mais famosos. Por volta do 5º milênio a.C., as comunidades pré-históricas da região começaram a domesticar animais, cultivar cereais e, crucialmente, a desenvolver a irrigação em larga escala. A capacidade de controlar as águas imprevisíveis dos rios Tigre e Eufrates transformou uma terra potencialmente árida em um celeiro fértil, permitindo o sustento de populações maiores e mais densas.
Esses avanços agrícolas levaram ao surgimento de vilarejos que, com o tempo, cresceram em tamanho e complexidade. A cultura Ubaid (c. 5500-4000 a.C.) é considerada a precursora direta da civilização suméria, com suas cerâmicas distintivas e os primeiros indícios de edifícios públicos. Mas foi durante o Período de Uruk (c. 4000-3100 a.C.) que a verdadeira revolução urbana tomou forma. Uruk, que dá nome ao período, tornou-se a primeira grande cidade do mundo, abrigando dezenas de milhares de habitantes.
Nesse período, o desenvolvimento tecnológico e organizacional explodiu:
- O surgimento da escrita: De simples pictogramas para a complexa escrita cuneiforme, inicialmente usada para registros administrativos de templos e armazéns.
- A roda: Sua invenção, tanto para a cerâmica quanto para o transporte (carros de guerra e carroças), revolucionou a produção e o movimento.
- Sistemas de irrigação avançados: Uma rede de canais e diques que exigia uma administração centralizada e eficiente.
- A arquitetura monumental: A construção de zigurates e templos gigantescos, dedicados às divindades patronas das cidades-estado.
Essas inovações não eram apenas tecnológicas; elas exigiam uma estrutura social e política altamente organizada, com sacerdotes e, eventualmente, reis (os ensi ou lugal) no comando, gerenciando a distribuição de recursos e a defesa das cidades.
A Era das Cidades-Estado: Esplendor e Rivalidade Constante

O período Dinástico Arcaico (c. 2900-2350 a.C.) é a era clássica das cidades-estado sumérias. Cidades como Ur, Uruk, Lagash, Umma, Kish e Nippur emergiram como potências independentes, cada uma com seu próprio deus patrono, seu próprio rei e sua própria identidade. Essas cidades eram centros vibrantes de comércio, arte e religião. A vida girava em torno do templo, que era não apenas um local de culto, mas também o coração econômico da cidade, controlando terras, rebanhos e oficinas.
Apesar de compartilharem uma cultura, língua e panteão comuns, as cidades-estado sumérias estavam em constante rivalidade, impulsionadas pela busca por recursos escassos, como terras férteis, acesso à água e rotas comerciais. Fronteiras eram disputadas, divindades eram ofendidas e exércitos eram levantados. Essa era de esplendor cultural foi, paradoxalmente, também uma era de guerra quase contínua.
É nesse cenário de rivalidade que surge um dos episódios mais emblemáticos da história suméria: o conflito entre as cidades de Lagash e Umma.
A Guerra de Lagash e Umma: A Tragédia da Primeira “Depopulação”

A história da guerra entre Lagash e Umma é uma das mais bem documentadas do Período Dinástico Arcaico, graças a inscrições monumentais como a Estela dos Abutres e vários documentos administrativos. Essa rivalidade durou gerações, abrangendo mais de um século, e é um exemplo pungente dos custos humanos dos conflitos na antiguidade.
O epicentro da disputa era o controle sobre a Gu’edena, uma fértil planície fronteiriça que ambas as cidades reivindicavam como sua. A água e a terra arável eram a vida na Mesopotâmia, e o acesso a elas era motivo de guerra.
Eannatum, Ensi de Lagash (c. 2450 a.C.), foi um dos principais protagonistas. Após uma vitória decisiva sobre Umma, Eannatum ergueu a Estela dos Abutres, uma das mais antigas representações narrativas de guerra. O monumento celebra sua vitória, retratando sua falange de soldados marchando sobre os inimigos derrotados e, mais dramaticamente, abutres comendo os corpos dos caídos. Essa estela não é apenas um registro de guerra, mas também um testemunho visual da violência e da escala das batalhas na Suméria.
A Guerra de Lagash e Umma, em suas múltiplas fases, é frequentemente citada como um dos primeiros exemplos de conflitos que levaram a uma significativa “depopulação” local. Embora o termo “depopulação” em si possa evocar imagens modernas de genocídio ou despovoamento total, é crucial entender o contexto sumério. Não se trata de uma erradicação completa de uma população, mas sim de um conjunto de consequências devastadoras que levariam a uma drástica redução da população civil e militar, além de um impacto profundo na vida social e econômica.
As consequências da guerra incluíam:
- Perdas Humanas Diretas: As batalhas eram brutais. Embora os números exatos sejam impossíveis de determinar, os exércitos eram formados por conscritos e profissionais, e as mortes em combate e os ferimentos eram substanciais. A Estela dos Abutres mostra pilhas de corpos, indicando grandes perdas.
- Cativeiro e Escravidão: Os prisioneiros de guerra eram frequentemente levados como escravos, despojando a cidade vencida de sua força de trabalho e de parte de sua população.
- Fome e Doenças: A destruição da infraestrutura de irrigação, a queima de colheitas e o saque de armazéns resultavam em escassez de alimentos generalizada. A fome, combinada com a falta de saneamento e a presença de corpos, levava a surtos de doenças que podiam dizimar populações civis.
- Dispersão e Migração Forçada: Comunidades inteiras podiam ser forçadas a abandonar suas terras, fugindo da violência, da fome ou da escravidão. Isso resultava em deslocamento populacional, com pessoas buscando refúgio em outras cidades ou áreas mais seguras, esvaziando as regiões mais afetadas.
- Destruição Econômica: A guerra desorganizava a produção agrícola e o comércio, levando ao colapso econômico e à incapacidade de sustentar a população restante.
Portanto, a “depopulação” na Guerra de Lagash-Umma refere-se a essa combinação de perdas diretas por combate, escravização, deslocamento, e mortes por fome e doença, que resultavam em um esvaziamento significativo e prolongado das áreas afetadas, deixando para trás terras devastadas e populações drasticamente reduzidas. Não era um evento isolado, mas uma característica recorrente das guerras de longa duração.
A Ascensão de Sargão da Acádia: O Fim das Cidades-Estado Independentes

A exaustão das cidades-estado sumérias com suas guerras intermináveis abriu a porta para uma nova força. Por volta de 2334 a.C., um líder carismático e ambicioso surgiu do norte: Sargão da Acádia. Ele não era sumério, mas de origem semita, e sua ascensão marcou um ponto de virada decisivo.
Sargão, inicialmente um copeiro do rei de Kish, construiu um império sem precedentes. Ele conquistou todas as cidades-estado sumérias, unindo a Mesopotâmia sob um único domínio, criando o Império Acadiano. Sua tática militar era inovadora, baseada em um exército permanente e leal. Ele fundou uma nova capital, Agade (localização ainda desconhecida), e estabeleceu um vasto império que se estendia do Golfo Pérsico ao Mediterrâneo.
A conquista acádia representou o fim da autonomia das cidades-estado sumérias e o início de uma nova era de centralização política. Embora a cultura suméria e sua escrita cuneiforme continuassem a ser influentes, o acadiano tornou-se a língua da administração e da política.
O Renascimento Sumerio: A Terceira Dinastia de Ur (Ur III)
O Império Acadiano, apesar de sua grandiosidade, não durou para sempre. Após um século de domínio, ele entrou em colapso devido a invasões de povos bárbaros (possivelmente os Gútios) e conflitos internos. Isso levou a um breve período de anarquia, mas, notavelmente, a cultura suméria experimentou um último e brilhante renascimento.
A Terceira Dinastia de Ur (Ur III), fundada por Ur-Namu por volta de 2112 a.C., restaurou a glória suméria. Esse foi um período de grande centralização e burocracia, com o estado controlando vastos aspectos da economia e da sociedade. Ur-Namu é famoso por seu Código de Ur-Namu, um dos mais antigos códigos de lei conhecidos, que precedeu o Código de Hamurábi.
Sob Ur III, a Suméria viu um florescimento da literatura, da arte e da construção de zigurates monumentais, incluindo o famoso zigurate de Ur. Foi um período de paz relativa e prosperidade, um último suspiro da civilização suméria em seu apogeu.
A Queda Final: O Fim da Hegemonia Suméria
Apesar de seu poder e organização, a Terceira Dinastia de Ur também sucumbiu. Por volta de 2004 a.C., uma combinação de fatores levou à sua queda:
- Invasões de Amoritas: Povos semitas do oeste, os Amoritas, começaram a se infiltrar e atacar as fronteiras do império, enfraquecendo sua defesa.
- Pressão Elamita: Do leste, o reino de Elam (no que hoje é o Irã) lançou ataques devastadores.
- Crise Agrícola: Mudanças climáticas, salinização do solo devido à irrigação prolongada e inundações catastróficas podem ter levado a crises agrícolas e à fome generalizada.
O último rei de Ur III, Ibbi-Sin, foi derrotado pelos Elamitas, que saquearam Ur e levaram sua estátua divina para Elam. O império desmoronou, e as cidades-estado sumérias nunca mais recuperariam sua hegemonia.
Embora o povo sumério e sua língua eventualmente se assimilassem nas culturas semitas predominantes (como os babilônios e assírios), seu legado perdurou. A escrita cuneiforme, as leis, a matemática, a astronomia, as estruturas religiosas e políticas – todos foram adotados e adaptados pelas civilizações subsequentes da Mesopotâmia.
A Suméria, berço de cidades e da escrita, nos deixou uma compreensão profunda das primeiras complexidades da vida humana organizada, e também uma lembrança dos altos custos da guerra, como a “depopulação” sofrida em Lagash e Umma, que servem como ecos sombrios de conflitos que, de maneiras diferentes, continuam a moldar a história da humanidade.
Qual aspecto da Suméria, desde sua origem até sua queda, mais te fascinou?